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Samba

O samba é considerado a mais legítima manifestação cultural brasileira ligada às tradições africanas e afro-brasileiras, esse gênero se configura a partir da dança, de influências harmônicas, melódicas, rítmicas e estéticas de outras práticas musicais que se desenrolaram sobretudo a partir de meados do século XVII.

 

Como vimos anteriormente o termo batuque era atribuído de forma genérica a todo e qualquer festejo praticado pelos negros e esse sentido genérico se estenderá até o início do século XX quando o termo samba ganha uma denominação mais geral. (SANDRONI, 2001, p 85).

 

A primeira referência impressa feita ao termo “samba” se dá em 1838 em um jornal pernambucano denominado O carapuceiro, datado de 03 de fevereiro de 1838, 60 anos após ter noticiado o lundu. De acordo com Sandroni (2001), nessa edição, “samba” aparece como música e não como dança, descrito no periódico como “samba de almocreves”, fazendo, o articulista do jornal uma sátira com obras de Rossini: Semiramis, Gaza-ladra, o Tancredi etc. (SANDRONI, 2001, p. 86).

 

No mesmo jornal há outra referência ao samba como “dança do samba”, mencionado aqui como uma dança/música rural, referindo-se a ele como “diversão de gente da roça”, trazendo o “samba” enquanto sinônimo de atraso da zona rural e associando-o ao termo pejorativo “tatamba”, fazendo um claro contraponto às músicas dançadas na capital como o lundu-chorado, o lundu que em meados do século XIX já contava com uma versão urbanizada e praticada pela sociedade defensora da moral e dos bons costumes da época.

 

O contexto ao qual se insere o samba no Rio de Janeiro pode ser entendido a partir de três eventos que consideramos importantes (mas que não são exclusivos) para o florescer do samba carioca. O primeiro seria o fato de que, como dito anteriormente em seção específica, um grande contingente de povos bantos que foram trazidos para Salvador, foram levados principalmente para o Recôncavo baiano, com a transferência da capital para o Rio de Janeiro em 1763 uma parcela desses grupos foram levados para a nova sede. O segundo evento é que antes da mudança da capital, os negros na Bahia, já realizavam seus batuques, também ligados aos cultos religiosos ancestrais e também participavam de festividades ligadas às tradições europeias como os reisados por exemplo, sempre acompanhados de música. Embora existam poucos registros históricos referentes às manifestações culturais dos africanos na Bahia nesse período, é sabido que através da tradição oral e da persistência dos negros escravizados em preservar o que podiam da sua cultura, a música praticada por eles enquanto estiveram em solo baiano migrou para o Rio de Janeiro, encontrando lá também outros elementos rítmicos que eram tocados na Bahia, obviamente já com alguma influência regional local, o que veremos mais à frente. Um terceiro ponto e nesse caso específico não se trata exatamente de um evento, mas de um ponto geopolítico de convergência cultural que era a existência da Praça Onze, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, local onde aconteceram os primeiros desfiles das escolas de samba. A Praça Onze existiu e resistiu por pelo menos 150 anos e no início tinha o nome de Rocio Pequeno, mudando para Praça Onze em homenagem à data da Batalha de Riachuelo, acontecida em 11 de Junho de 1865. Nas proximidades da praça viviam imigrantes espanhóis, italianos, judeus e negros, em sua maioria vindos da Bahia em busca de melhores condições de vida. A praça foi destruída no início da década de 40 como parte de um projeto de modernização do centro do Rio de Janeiro para a construção da Avenida Presidente Vargas, o local tem uma ligação histórica com o samba e representa ainda hoje um referencial de resistência negra frente às perseguições impostas pela polícia na época por considerarem o espaço como um local frequentado por desocupados, prostitutas e bêbados, sobretudo no final do século XIX e início do século XX. De acordo com (LIRA NETO, 2017, p. 34), em 1889, com o fim da prática escravista no Brasil e a instalação do regime republicano, acreditava-se que os ideais postulados a partir da filosofia positivista de Augusto Comte inspirados na máxima comtiana: “ O amor como princípio, a ordem como base e o progresso como meta”, dizeres sintetizados e imortalizados em nossa Bandeira até os dias de hoje como “Ordem e Progresso”, serviu igualmente para o despertar de um discurso justificado no civismo para uma limpeza étnica e social que se daria a partir de grandes cortiços existentes no centro do Rio de Janeiro, mais precisamente na rua Barão de São Félix, na conhecida à época como pequena África, e o maior de todos eles, o Cabeça de Porco seria o primeiro.

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O cortiço Cabeça de Porco abrigava mais de duas mil pessoas, em sua maioria negros e mulatos, estivadores, pedreiros, serventes, costureiras, ambulantes, marceneiros, doceiras, sapateiros, lavadeiras, biscateiros, prostitutas, punguistas, rezadeiras, embromadores, ventanistas e desempregados. (LIRA NETO, 2017, p. 35).

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Em 26 janeiro de 1893 procedeu-se o que seria a primeira de várias ações com o objetivo de acabar com os cortiços nos arredores do Rio de Janeiro, com o fim do Cabeça de Porco os mais de dois mil moradores só tiveram uma alternativa que foi reunir parte dos escombros que sobraram dos barracos de madeiras e outros materiais e subir o Morro da Providência e reconstruir seus barracos numa topografia desfavorável à construção de moradia de forma segura, assim aconteceu também nos morros de Santo Antônio, São Carlos, Borel, Formiga, Macaco, Mangueira e Salgueiro. (LIRA NETO, 2017, p. 36).

Vivendo em situação de precarização do trabalho, o encontro com a religião representava uma forma de amenizar as mazelas cotidianas e também um momento de contato com sua ancestralidade, através do candomblé, religião que mantém uma relação muito próxima com a música, pois para além do caráter religioso, estão associados o sagrado e o profano, elo de ligação entre a religião e as festividades.

 

Num cenário de perseguições e exclusão por parte do Estado e da classe dominante em relação aos negros ex-escravos e mestiços, o que se presenciou foi um processo de apropriação pelos negros e mestiços de aspectos da cultura ibérica representada através das festividades em homenagem aos santos católicos como por exemplo, Nossa Senhora da Penha. Nessas festividades, a presença dos negros e mestiços era notada através das barracas armadas ao redor da igreja da Penha com iguarias da culinária afro-brasileira que ia conquistando o paladar dos devotos participantes das festividades. É nesse contexto que surgem novas sonoridades, coreografias, ritos, saberes, crenças e formas de lazer. (LIRA NETO, 2017, p. 38).

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Esse emergir de novas sonoridades nada mais é do que aquilo que já vinha ocorrendo nas principais regiões do Brasil que é a fusão rítmica, harmônica, melódica, o uso de instrumentos de origem indígena, ibérica e africana, assim como as mútuas influências estéticas existentes entre os gêneros musicais e isso vai resvalar também na forma de uso dos instrumentos musicais que irão emprestar seus timbres à produção cultural local, gerando um processo de sedimentação de uma nova musicalidade que surge a partir de matrizes culturais afro-brasileira que já eram praticadas aqui em Salvador antes da mudança da sede da capital para o Rio de Janeiro. Dessa maneira, do ponto de vista da sonoridade temos que, a partir dessa perspectiva, instrumentos trazidos da Europa como violões, violas, bandolins, flautas e sanfonas passavam a dialogar com atabaques, xequerês, ganzás e marimbas. (LIRA NETO, 2017, p. 38).

 

A partir do início do século XX, as comunidades negras e mestiças deram o formato a um novo tipo de samba, uma forma diferente de tocar os sambas que já eram praticados sobretudo na Bahia. Nasce então um tipo de samba urbano também denominado de samba carioca. Essas comunidades também criaram as escolas de samba, espaços de integração e troca de experiências, rede de solidariedade e festejos.

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O processo de reforma do centro do Rio de Janeiro, responsável por afastar essas comunidades dessa região não foi suficiente para impedir os sambistas de ocuparem as ruas em um ato de resistência utilizando o samba e as escolas de samba, um instrumento de alto poder de integração social como resposta à exclusão e ao preconceito. Relacionado a esse fator de transição e às relações estabelecidas entre a comunidade e a formação de uma cultura popular baseada, sobretudo numa experiência sociocultural, o samba carioca emerge contribuindo para o surgimento de mais uma nova forma de manifestação da cultura do povo brasileiro.

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